terça-feira, março 02, 2010

O dono do estacionamento





Seu Martônio não sabia sorrir. Andava para lá e para cá naquele estacionamento dele. E explorava todo mundo. Os preços lá em cima. Seu Martônio era um velho ranzinza e não parecia agradar nem a Dona Gertrudes, a mulher dele. A Ger passava o dia sentada atrás do balcão, recebendo o dinheiro de quem estacionava ali. 5 reais a hora. E lotava. A Ger só sabia era reclamar, dizia seu Martônio. E saía bodejando qualquer coisa ininteligível.

A única coisa que fazia o velho sorrir eram os filhos. Ah, que Quinzim estava que era um homão. E consertava qualquer coisa, sabia? Jonas estuda muito, mora no exterior, sabia? E apontava com o dedo cheio de artrite pro retratos em cima da mesa. Se seu Martônio queria aumentar o preço do aluguel mensal de uma vaga, que deveria ser pago religiosamente no dia 10 de cada mês, bastava puxar o assunto da filharada. Era a tática. "E os meninos, como é que vão?". Aí o homem mudava o semblante.

Mas parecia é que os "meninos" não estavam nem aí pro Martônio. Sei lá quem era a mãe deles. Dona Gertrudes é que não era. Cabelos vermelho-acaju bem compridos, as unhas postiças e a maquiagem pesada. Uns vinte anos mais nova que seu Martônio. O que não significa que ela era exatamente o que se pode chamar de jovem... Não estava nem aí pros "garotos". E nem poderia: eles nunca passavam por ali. Eles eram uma espécie de filhos-fantasma. Parecia que os anjinhos já tinham partido, porque eu mesma só conhecia era nas fotografias. E embora o velho falasse horrores dos feitos dos meninos, nunca tocava no assunto "visita". Ele parecia se contentar em saber que os filhos eram bem-sucedidos. Ou fantasiava.

Um dia fui pagar a mensalidade e estava lá um rapazinho até bem apessoado, uns 25 anos nos couros. Comia um sanduíche gigante bem devagarzinho e tomava uma coca-cola na garrafa de vidro. "Quer mais? A Ger faz um pudim...", era o seu Martônio quem ficava repetindo. Eu cheguei com o dinheiro e ele recebeu feliz (esqueci de dizer que o dinheiro também acalmava o homem que era uma beleza). Aí o velho me apresentou o filho. Era o Quinzim. Um "homão". "Consertava qualquer coisa, que esse curso de engenharia era uma beleza". O rapaz sorria constrangido. "Coma, meu filho, coma". Eu soltei algo como um "muito prazer" e tratei de sair com meu recibo. Era uma relação estranha. A Dona Ger olhava, meio que penalizada com a abobalhação do marido.

Eu vi quando o menino atravessou a rua, ainda meio constragido, parecendo não querer voltar mais. E vi seu Martônio no comecinho da noite, sentado no banquinho velho, olhando pra rua. Perdido. Meio sandubão repousava ainda em cima do balcão, a garrafa de coca-cola vazia ao lado. Uma mosca se interessava pelos restos. A Ger digitava alguma coisa no computador. E o silêncio do seu Martônio. Passei ligeiro do lado. O velho acordou do transe. Reclamou do cansaço e saiu por aí, bodejando. Foi abrir o portão falando uns impropérios pra Gertrudes.

É que a raiva muitas vezes é só um escudo para se proteger de uma solidão sem fim. Só que de qualquer jeito dói.

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