segunda-feira, fevereiro 04, 2008
O óbvio
Quando ela resolveu sair de casa e atravessar a rua naquele dia, não percebeu que o Sol brilhava forte lá em cima. Não percebeu a brisa que previa um dia bom. Não quis notar que as crianças risonhas, não riam só para as mães e para as babás. Elas riam também para o mundo lá fora. Mas, não, ela não fez o mínimo esforço para notar a paz mágica do sorriso das crianças, a sinfonia rara dos pássaros em uma manhã radiante. Quando ela atravessou a rua, fez questão de simplesmente atravessar. Atravessar e suspirar, enfim, por mais um dia.
No fundo, ela se recriminava por só notar as pequenas alegrias tarde demais. Ela se recriminava por não saber ser uma Poliana e achar graça em tudo. Ela chegava a se desprezar por ter tanto, e ainda assim, ser um ser vazio. Sim, era verdade. Não havia como negar, parecia mesmo que estava impresso bem na ponta do seu nariz, numa placa grande com letras de forma vermelhas: empty (em inglês, para dar um ar mais hollywoodiano). Mas não era de manhã que ela refletia sobre isso. Não, não. A coisa pegava mesmo de tardezinha, quando a poeira quente da tarde vinha anunciando que mais uma noite estava chegando. "Mais um dia, pobre dia", ela pensava.
Mas aquela manhã veio diferente. Ela só ainda não sabia. Ela continuava com trabalho, com família, com dinheiro, com amigos, com lazer e com vazio. Ela continuava caminhando a passos lentos. Mas definitivamente aquela manhã chegou cheia de ar puro. (Tá, bem lá no fundinho ela até notou um brilho esquisito no raio de sol que refletia nos lábios coloridos de gloss rosa, da mocinha que corria mais adiante).
Engraçado, eu posso ouvir você dizendo que ela encontrou um novo amor, ou que uma criança inteligente disse coisas espetaculares que mudaram a vida dEla para sempre. É engraçado como as pessoas tentam adivinhar os finais das histórias! Mas, não, você está completa e redondamente enganada (enganadA, pois sei que raros homens lêem esse blog, e que eles não ficarão ofendidos com o tom segregador). Nada disso aconteceu, cara leitora. Na verdade, talvez você fique decepcionada quando souber que tudo se deu com um tombo. Não, ela não tombou com alguém incrível, ela não foi hospitalizada e viu a vida passar diante dos olhos em alguns segundos. Ela só levou um tombo. Mais um tombo. Num meio fio. Foi apenas uma torçãozinha leve que levou os grandes olhos dela pro chão do jardim da praça. Foi o suficiente.
Ela não quis mais levantar, sabe? Pela primeira vez ela viu duas joaninhas vermelhas de bolinhas pretas andando calmamente pela grama. Ela viu filhotes de flores lutando para crescerem. Ela viu botões de rosa desabrochando num espetáculo simples e lentíssimo. Lentissimamente ela percebeu um mundo minúsculo. Algo que não chegava perto do filme "Vida de Inseto", tsc tsc. Insetos não falam. Eles andam, trabalham, têm família. Eles nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. Flores também não falam (e, coitadas, não têm famílias).
Você deve estar se perguntando: "sim, mas o que tem isso demais?". É aí que está! Isso TEM demais! E são só insetos, puxa! Ela pensou primeiro: "os insetos são felizes". Mas foi aí que ela notou como aquele comentário era estúpido. Estúpido, sim. Insetos não são felizes! Insetos são insetos. Seus pequenos cerebrozinhos (licencinha poética, amigos) não pensam, propriamente. Eles mantêm a estúpida vidinha de um inseto: nascer, crescer, reproduzir-se e morrer. Foi Darwin quem disse: eles não evoluíram tanto quanto um humano, não.
Humanos, sim, pensam. Humanos, sim, podem construir cidades do jeito que querem, podem fazer músicas diferentes, podem inventar refeições diferentes todo dia (você já viu algum passarinho comendo minhoca ao molho, han?). E porque os humanos pensam? Talvez porque eles não estejam aqui só para nascer, crescer, reproduzir-se e morrer. Não é mágico? O que não faz um tombo para um ser com cérebro que só pega no tranco. Você já notou como se demora para descobrir o óbvio? Humanos são mesmo bichos engraçados.
P.S.: Não, ela não ficou feliz para sempre. Ela aprendeu a pensar. Ela aprendeu a notar o óbvio. Não é óbvio?
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